O piquenique

Uma escola com vista para a montanha e para o céu, em vez de prédios. Com entrada por um portão que pode ficar aberto porque os alunos não fogem, todos os vizinhos se conhecem e os poucos carros que circulam pela rua estreita de paralelo passam devagar. Uma escola com árvores, baloiços e escorrega, espaço para correr e jogar à bola à vontade e umas mesinhas e banquinhos de pedra tão perfeitos que parecem ter sido feitos de origem, à medida, como a mobília que se manda fazer para uma casa nova.

Uma escola primária (uma EB1, como é correto dizer agora) onde os meninos que já andam no 5º ou 6º ano regressam porque têm saudades. Dos amigos, da professora e da escola. Onde um piquenique de fim de ano para os seis alunos se transforma numa mega-festa com mais de 40 pessoas, entre pais, mães, avós, avôs, amigos e mais filhos, genros e netos. Onde os seis alunos deram um espetáculo de música que me emocionou pela forma concentrada e empenhada com que cantaram e tocaram as flautas e o pau de chuva. Seis meninos e mais uns quantos que tomaram conta do meu e tiveram paciência para brincar com ele e jogar com ele à bola quando já era noite.

Não me lembro de alguma vez me ter sentido tão em casa no meio de tanta gente desconhecida. Foi como sempre lá tivesse estado, ou como se tivesse regressado. À escola, ao sotaque que sempre achei que não tinha e que tinha e perdi, à forma desempoeirada, despretenciosa e franca de falar, à ausência de peneiras e de vaidades, ao "venham mais cinco ou mais 10 porque há comida para todos". Fui apenas mais uma mãe no meio de muitas e gostei. De comer sardinhas e febras à mão e de ver os outros fazer o mesmo sem cerimónias.

Já há pouco disto, mesmo nas aldeias. Pessoas simples e genuínas, contentes por estarem juntas. Não ouvi nenhuma mãe criticar outra. Não ouvi nenhuma dizer mal dos filhos dos outros. Não vi sorrisos sonsos ou forçados. Nenhum conflito se gerou por causa da organização das mesas, do caldo verde, da comida. Durante os três anos que o meu filho leva de infantário, não troquei com as mães dos colegas dele metade das palavras que troquei com as mães dos alunos da minha mãe. Somos umas tontas, as mães da cidade, perdidas na correria, nos nossos umbigos, no nosso trabalho, nos nossos problemas, nos nossos filhos, a olhar pouco, muito pouco para o lado.

Já esteve para fechar, aquela escola. Não deixaram, as mães. São só seis. Mas estas mães desta aldeia transmontana são como todas as transmontanas - "de gancho", de luta. E a escola ficou aberta mais um ano. Com seis alunos. Para o ano serão só cinco, porque os meninos crescem. Não é que a aldeia não tenha mais meninos. Mas ali fecharam a sala da pré-primária, onde ainda estão os brinquedos dos meninos que ali cresceram e brincaram até fazerem seis anos. E meninos mais pequenos da aldeia ficaram em casa dos avós, foram com as mães para a cidade ou foram para o jardim de infância da aldeia do lado (como se ali tudo fosse perto). E assim se consegue fazer de conta que não há crianças nas aldeias do interior de Portugal, criando caminho para fechar as portas de uma escola de fazer inveja a muitas, uma escola que podia ser uma casa.

Na verdade eu não sei nada sobre aquela aldeia e aquela escola. Só lá estive de passagem, mas tive uma das melhores noites dos mais recentes anos da minha vida. E por isso terei pena qu a escola feche, que o Estado deixe apodrecer o espaço, que aqueles meninos e meninas tenham de ir para longe, que a professora prefira reformar-se, que o professor de música não possa voltar para aperfeiçoar aqueles toques de flauta. Que a casa da minha mãe deixe de estar cheia de batatas e alfaces e cerejas que se oferecem não por vassalagem, mas por simpatia.

Aos meninos e meninas que espero ver no piquenique do próximo ano eu, que não sei nada, gostava de deixar um recado: aproveitem a vossa aldeia. Se acham que ela não tem nada, desenganem-se, tem muito. Pode não ter mar e hotéis e outras coisas que mostram na televisão para falar de férias. Mas a vossa aldeia tem tudo o que importa: amigos e família.

O que há na cidade é mais fogo de vista do que outra coisa. Nós, os que andamos por lá, acabamos por ficar fartos daquilo - dos carros, da poluição, da falta de árvores e de baloiços (fazem ideia de como é difícil encontrar um parque infantil com baloiços no Porto?), de espaço para correr e brincar.

No momento em que acharem que não têm nada para fazer, leiam um livro. Eu dava tudo para voltar a sentar-me na soleira de uma porta, num jardim ou num terraço a ler um livro sem o barulho de mais nada. Lia "Os Cinco", "Os Sete" e "As gémeas no Colégio de Santa Clara", da Enid Blyton e a coleção "Uma Aventura", da Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada. Lia muito mais, tanto que já não me lembro de tudo. Mas lembro-me que era bom. 

E no meio disto tudo, meus seis meninos e minhas seis queridas mães, dou por mim a pensar que até podia ter sido professora, que talvez tivesse gostado de ensinar.

4 comentários:

  1. Queimamo-nos muitas vezes por causa dos fogos de vista. Essa é que é essa.

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  2. Foi com muito gosto e emoção que li este texto. Uma mãe de uma aluna desta escola fantastica que espera voltar a repetir este piquenique.

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  3. Prf. de Música.
    Gostei muito destas palavras, palavras estas que deveriam chegar aos olhos nos nossos "ministros" e não apenas ao amontoar de papeis das suas "secretárias", que de seguida vão direitinhos para a reciclagem... Ministros que são do nosso interior e que quando saem por uns tempos... esquecem-se de onde vieram.
    Foi com uma enorme satisfação e vontade de exercer a minha profissão, que estive com esses maravilhosos seis alunos e será com enorme tristeza que provavelmente não continuarei a passar o meu conhecimento para os cinco que ficarão para o próximo ano letivo.
    A todos os intervenientes desta pacata mas ativa escola, muito obrigado e um bem ajam...
    Maurício Ramos

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  4. eu até enviava o texto para o ministério, mas, lá está, possivelmente não serviria de nada. o importante é a força daquelas (e de outras) mães e de professores empenhados.

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