A vida depois de uma morte é um lugar estranho


O pior nem foi a morte. Instantes antes, durante um dos momento que me coube na vigília que lhe fazíamos à vez desde que veio para casa porque se sabia que a morte estava para breve, até lhe pedi que desistisse. Piorava a cada dia, definhava, dizia e fazia coisas sem sentido ou já nem dizia nada. Estava morto antes de estar. 

Depois de lhe sussurrar o pedido fui tomar banho, deixei o pai dele no meu lugar. Quando regressava ao meu posto o telefone tocou. Ouço barulho no quarto. "Está na mesma?" Acho que não. Acho que morreu.

Chorei, desesperei-me, entrei em pânico quando vi o carro funerário na garagem de casa, abracei-me, deixei-me abraçar, roguei pragas a quem me quis dar beijinhos só porque sim, a quem me disse "Deus é que sabe", a quem garantiu que o tempo cura tudo, roí-me de nervos para não despachar ao pontapé velhos e novos que preenchem as horas a visitar velórios e a fazer comentários despropositados sobre pessoas e famílias que nem conhecem.

Perdi o resto da vida que já tinha perdido quando soube que ele ia morrer, que não, não havia hipótese nenhuma, era inevitável, irreversível, imutável, ia morrer.

Soube uns quinze dias antes, quando se tornou incontornável: teve de ficar internado, a minha mãe já não conseguiu inventar nada para esconder. O teu pai ficou no hospital, está doente, tem cancro, vai morrer. 

Não a culpo por ter escondido. Nada. Nunca questionei a opção nem imagino a angustia de andar três meses a fazer uma ginástica de super-mulher para poupar os filhos e o marido. 

Passámos tardes no hospital, eu a enganar seguranças e a tornar-me especialista em contornar a regra dos dois cartões por quarto para que junto dele estivesse sempre mais gente do que aquela que podia estar. E a fumar às escondidas para não desabar, quando me calhava a vez de ficar cá fora à espera. 

Naquela manhã de verão em que o vi chegar de pijama, pelo próprio pé, não foi preciso ninguém dizer-me nada. Era para morrer. Vinha para casa morrer. Tinha 52 anos. Eu 21. A minha mãe ia fazer 41. O meu irmão 15.

Durante anos, muitos anos, morri quase toda. Acabei o curso, fiz o estágio, comecei a trabalhar, vibrei com o trabalho, enchi-me de orgulho, desejava que ele ainda pudesse cá estar para ver, saí muito, bebi copos, apaixonei-me, tive um filho. 

Há uma parte que nunca volta ao sítio. O resto faz-se de remendos. Mesmo quando se é muito feliz, mesmo quando não nos lembramos, somos sempre uma emenda. 

Não, o tempo não cura. O tempo passa e não podemos ficar parados, só isso. A dor não desaparece. Só fica um bocado escondida nas alegrias e tristezas do dia-a-dia. Mas também volta noutras alegrias e noutras tristezas. Fica-se com um coração de vidro. 

Ando há que tempos para escrever sobre isto. Nunca consegui. Mesmo com estas letras todas sinto que não o fiz. 

Porque foi este texto do Miguel Esteves Cardoso ('Último Volume') que me fez ter coragem para escrever alguma coisa sobre isto, deixo aqui as citações que mais me marcaram:

"Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado". 

"Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar". 

As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre". 

"É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar". 

"É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução". 

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